Os meus escritos, as minhas leituras



Fumar altera a estrutura do DNA, confirmaram duas investigações portuguesas. Mas o tabaco está embrenhado culturalmente, e a sua erradicação parece utópica. Texto de Luís Lima; Fotografias de Alexandre Vaz

O denso fumo azul de um cabaré do século passado animado por Marlene Dietrich, a diva de voz rouca e longas unhas que apertam esguios cigarros – um quadro vivo, talvez a preto e branco, com excepção para o cobalto do fumo e para a incandescente ponta de combustão do cilindro de tabaco. É noite de boémia. Mais um pouco de fumo e eis a meditação e a concentração do aroma exalado por um cachimbo de Sartre que envolve Simone de Beauvoir no café Les Deux Magots; cachimbo esse que logo se solta para viajar na mala de Hemingway, inspirando a escrita, expirando o ar. Mais uma baforada, sem travar, basta para que alguns anéis de fumo prateados se afiem por entre os gorduchos dedos que apertam o obeso charuto de Alfred Hitchcock, uma fumaça tão perturbante que se torna vertiginosa. “Vertigo” seria, de facto, um nome apropriado para a ligação directa que a química dos genes estabelece entre as cornucópicas voltas do fumo do tabaco e a dupla hélice, espiralar, da cadeia de DNA. Fumar é uma falta de higiene para os genes. O fumo entranha-se, como é do senso comum, nas paredes das casas, tecidos e madeiras, roupas e automóveis. Mas entranha-se também até ao mais íntimo recanto do ser humano. Até à mais pequena parcela orgânica de cada fumador, passivo ou activo. Daí até alterar o equilíbrio da dupla hélice espiralar do DNA é apenas um passo, não determinado, não exacto, mas certamente nocivo e até mortífero. Sabe-se há algumas décadas que o cancro tem origem numa alteração genética do DNA das células. Aliás, a comunidade científica descobriu, em 1761(!), por obra de Hill, que a prolongada inalação de tabaco provoca cancro. A química do DNA e a sua relação com o cancro, essa que é a segunda causa de morte nos países industrializados, tem sido objecto de um estudo continuado desde há 15 anos no Departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT) da Universidade Nova de Lisboa (UNL), sob a coordenação da professora e investigadora Ana M. Lobo. E se já se sabe muito sobre a doença. O que se desconhecia até ao estudo desenvolvido na FCT era quais os compostos genotóxicos (isto é, “tóxicos” para os genes) potencialmente cancerígenos existentes no tabaco. Ou melhor, sabia-se, mas não era possível prová-lo nem verificá-lo em seres humanos, por motivos éticos bem compreensíveis. “Hoje qualquer pessoa que queira justificar a toxicidade dos compostos mutagénicos do tabaco, ou de determinadas dietas alimentares, sabe como os obtém. Nós concebemos um novo método de síntese”, afirma Ana Lobo. Além do trabalho teórico desenvolvido na FCT, outro estudo, incidindo sobre determinados componentes do tabaco, foi levado a cabo no congénere departamento do Instituto Superior Técnico (IST) pela professora e investigadora Matilde Marques. Estes dois estudos trouxeram a possibilidade de isolar, identificar, estudar e compreender a actuação de determinados compostos presentes no tabaco, mas também de dietas alimentares e outros factores ambientais.

Artigo retirado da revista National Geographic, publicado a Julho de 2005