Para além da aula




Climbing Wall, Singapore




Holi Celebration, India




 

Desert Crossing, Rajasthan, India



Underwater Sculpture Park, Grenada

Gold Miner, Mozambique

Imagens retiradas: National Geographic





Por onde anda a língua portuguesa?


            Dados da Universidade do Texas, nos Estados Unidos (1995), a Língua Portuguesa é a sexta língua mais falada no mundo. A pesquisa diz que mais de 170 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo falam a nossa língua. E, 12 milhões de pessoas utilizam o português como segunda língua.


 
Aqueles bonecos azuis
A mesma multinacional que nos impede de chamar estrumpfes a uns bonecos cujo nome original se assemelha imenso a estrumpfes, permite que os espanhóis continuem a dar-lhes a ignóbil designação de pitufos.
O tempo, esse grande escultor, bem podia estar quieto. Que esculpa o que está informe ainda se admite, mas que se ponha a cinzelar o que já havia sido esculpido parece exagero. Nada do que conhecemos na infância persiste. A casa onde crescemos parece muito mais pequena se a visitamos agora. Certos refrigerantes são hoje indiscerníveis de WC Pato. Acertar com uma peça de fruta demasiado madura na testa de um idoso vai deixando de ter graça à medida a que vamos ficando idosos. São as mais lindas memórias da meninice que vão perdendo o sentido e o sabor. Eu, que fico aborrecido se me mudam de sítio as chaves do carro, gostaria que o tempo fizesse o favor de parar de me mexer na infância.
Quando não é o tempo são as multinacionais. Que, em geral, são um pouco mais poderosas que o tempo. Uma delas resolveu agora decretar que os bonecos a que sempre chamámos estrumpfes passem a chamar-se smurfs. Eu não sei se uma rosa teria igual beleza e o mesmo cheiro se não se chamasse rosa, mas tenho a certeza de que os estrumpfes são menos estrumpfes se se chamarem smurfs. A multinacional argumenta que quis uniformizar o nome dos bonecos dentro de cada língua. No Brasil eram smurfs, cá eram estrumpfes. Para que a multinacional não tenha de gastar dinheiro a mudar o rótulo dos produtos que manda para ambos os países, foi tudo corrido a smurfs. É uma espécie de acordo ortográfico especificamente aplicado aos estrumpfes. Um acordo estrumpfáfico.
Uma injustiça e um escândalo, digo eu. Os proprietários dos estrumpfes pensaram que, em tempos de crise económico-financeira, a sua decisão passaria em claro, mas enganaram-se: eu nunca deixei que o essencial me desviasse a atenção daquilo que é verdadeiramente acessório. E milhares de pessoas que, tal como eu, têm pouco que fazer, não deixarão de fazer ouvir a sua indignação. A mesma multinacional que nos impede de chamar estrumpfes a uns bonecos cujo nome original se assemelha imenso a estrumpfes, permite que os espanhóis continuem a dar-lhes a ignóbil designação de pitufos. Pitufos, notem bem! Mais: na Catalunha, os pitufos chamam-se barrufets. Barrufets! Os estrumpfes, que são obrigados a ter o mesmo nome em Portugal e no Brasil, em Espanha podem ter dois nomes diferentes. E nomes tão estúpidos como pitufos e barrufets. Não, multinacionais: não me vergarão. Nem vocês nem o tempo. Os estrumpfes serão sempre estrupmfes! E o Capri Sonne não sabe a abrasivo sanitário de eficácia comprovada na remoção do calcário da sanita. Aquilo é laranja. Laranja!

Ricardo Araújo Pereira, in Visão


Croniquinha


Não abandono os sítios de que me fui embora, coloquei a alma, escondida, sob cada objecto. Continuo em Veneza com sete anos, em Berlim com quarenta, não saí do lago do Jardim Zoológico, onde passeava, com o meu avô, num barco com pedais. Lembro-me dos patos, dos cisnes, de ser tão feliz, lembro-me de tudo. Não esqueci nada, não vou esquecer nada
Moro num apartamento que escolhi, comprei, está em meu nome, o único bem no mundo, não contando o automóvel, que está em meu nome, porque nunca quis ter coisas que me pertencessem e, no entanto, não me abandona a impressão de morar num hotel, numa espécie de suite com alguns quartos. Faço cerimónia, não ligo aos móveis, não ligo aos objectos, escrevo aqui como fui escrevendo em tantos outros sítios, em Portugal e no estrangeiro, e não me sinto em casa, dá-me ideia de habitar, por empréstimo, o lugar de um outro que não conheço e que, a qualquer momento, vai entrar e mandar-me embora, falta-me o sentido de propriedade do que quer que seja, onde eu gostava mesmo de viver era num comboio, prestes a viajar, que não partisse nunca. Os comboios sempre me fizeram sonhar. Os comboios? Quase tudo me faz sonhar, que esquisito. Às vezes parece-me que sou uma nuvem com raízes, sempre a partir e a ficar. Não abandono os sítios de que me fui embora, coloquei a alma, escondida, sob cada objecto. Continuo em Veneza com sete anos, em Berlim com quarenta, não saí do lago do Jardim Zoológico, onde passeava, com o meu avô, num barco com pedais. Lembro-me dos patos, dos cisnes, de ser tão feliz, lembro-me de tudo. Não esqueci nada, não vou esquecer nada. Sofrimentos de amor aos doze anos, os primeiros versos, um pardal de pata quebrada que o sapateiro consertou com uma tala de cana. Certos perfumes nos elevadores vazios, as conversas, cheias de palavras desconhecidas, dos adultos, ajudar à missa na igreja gelada, a dor dos outros, que invariavelmente me aflige, o sacristão coxo, de Nelas, a pedalar uma trotineta que não existia. O sorriso raro do meu pai, as duas empregadas da minha avó a beijarem-se. Vidas pequeninas que eu não compreendia. A profunda solidão das pessoas. O meu espanto diante das criaturas amargas. Entendo a tristeza, entendo o desejo de suicídio, não entendo a amargura, o azedume, a avidez. Nem a antipatia, nem a inveja, nem a vaidade. Hoje passei pela igreja de Santo António onde, em criança, entrei tanta vez. Acho que ele me salvou das três doenças difíceis que tive. Com seis anos a minha palma no seu túmulo, em Pádua. Há-de estar lá, bem impressa, a marca destes dedos. Intermináveis discursos diante de quadros e estátuas, que me aborreciam de morte. Entre parênteses também não entendo a morte e, quanto à vida, será que a entendo de facto? Ou à minha adolescência, veemente e confusa? O desejo informulado, a descoberta atónita do sexo. Que mistério, à luz da madrugada, o corpo que se transforma e cresce e, depois, a minha cara no lençol como num sudário. Agora veio-me à cabeça um amigo meu, Frei Bento Domingues. Um dia disse-lhe
- Estás sempre tão alegre
ele respondeu
- O que eu podia eu ser senão alegre?
e não conheço mais nenhuma pessoa em que até os óculos riem, não conheço ninguém com tanta esperança, tanta curiosidade infantil, tanta fé de olhos abertos, tanta tolerância. Raios o partam. Comecei pela casa mas aquela que sinto minha fica longe e já não nos pertence. Não me atrevo a entrar, olho-a de longe, quase a medo, e é tudo. Passo na estrada, penso
- Ali era a casa
corrijo
- Ali é a casa
e fujo. Quase tudo mudou nas redondezas, aliás, quase toda a gente faleceu. O casaco do meu outro avô, cheio de palitos. As duas lareiras da sala. Não era uma casa de ricos, recordo-me de imensas chávenas com a asa quebrada, recordo-me da mesa de pingue-pongue no andar de baixo e dos sons repetidos, cada vez mais rápidos, cada vez mais ténues, da bola ao cair no chão de pedra. Da vinha. Das vindimas. Olha, lá estão as empregadas a beijarem-se de novo e eu, parvo, sem entender. Beijos como no cinema, cochichos ternos. Fugi também, ocultando a minha perplexidade na trepadeira, cheia de insectos e lagartixas.
Afastava-me, com receio dos bichos, até ao muro ao lado da cancela. A estrada deserta, nem uma velha num burro, nem uma pessoa com um atado de lenha à cabeça. Comecei a escutar um barulho de guizos ao longe, um barulho de rodas de carroça, um barulho de vozes. A estrada tornava-se negra, vibrante, cheia de ecos que cresciam, eixos mal oleados, pranchas desconjuntadas, o que se me afigurava um canto. E, então, passaram os ciganos.

António Lobo Antunes, in Visão




Algumas fotos, retiradas do site da National Geographic, que achei magníficas:

Folded hands, Brunei



Zebra, Tanzânia



Nuns, Colômbia

tulip farm, Tasmania